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Brincando de Deus: a nova convergência entre biologia molecular, medicina e tecnologia da informação

Por: Prof.Dr. Renato M.E. Sabbatini

Se os futurologistas estiverem certos, estamos entrando em um novo período revolucionário de mudanças da espécie humana, equivalente à invenção do fogo, da imprensa, da máquina a vapor, do computador e da Internet. E não é exagero afirmar isso, como você verá a seguir.

Esse período ainda está no seu início, mas já mostra os elementos que estão convergindo poderosamente para torná-lo realidade. Mais ainda, seu crescimento é exponencial, com uma velocidade assustadora, com a qual a ética, a moral, a justiça, a economia, e tantos outros pilares da sociedade no qual nossa existência segura tem sido baseada até agora, passarão por extensas e duradouras mudanças.

E quais são os elementos dessa convergência? Em primeiro lugar, temos o rápido avanço da biologia molecular, especialmente a biotecnologia, ou seja, a aplicação dos nossos conhecimentos recém-adquiridos sobre o genoma humano, e todas as “ômicas” associadas, como epigenômica, exposômica, transcriptômica, metabolômica, proteômica, etc. Afinal, não faz nem 20 anos que a ciência conseguiu decodificar um genoma humano completo, ao custo de bilhões de dólares, fruto do esforço de vários países e milhares de cientistas, ao longo de oito anos. Atualmente, é possível decodificar um exoma completo (os 22.000 genes humanos, aproximadamente, que codificam proteínas) em apenas algumas horas, ao custo de menos de mil dólares! Esses avanços possibilitaram o desenvolvimento de técnicas de engenharia genética, ou seja, a possibilidade de “brincarmos de Deus”, como escrevi em um artigo há exatos 20 anos, modificando o nosso genoma de inúmeras maneiras, algumas boas, outras possivelmente bastante danosas. A medicina, sem dúvida, será a mais afetada por essas grandes mudanças, através de duas tendências principais, a medicina translacional, que é a aplicação dessas descobertas fundamentais em nível celular e subcelular ao diagnóstico e tratamento das doenças, e a medicina de precisão, que permite tratar pacientes de acordo com o seu perfil individual.

A mais revolucionária dessas técnicas é a CRISPR-Cas, que é uma forma bastante acessível, tecnicamente, ráida e barata, de “editar” os genes de uma célula somática ou germinal, inclusive de embriões humanos pré-implantação, como um cientista chinês recentemente alegou ter conseguido. O CRISPR é uma “invenção” natural, um mecanismo desenvolvido pela evolução de bactérias para desativar certos vírus que as infectem, como os plasmídeos, ou seja, uma espécie de “sistema imune” primitivo dos procariotos. Consiste em uma molécula de RNA com a sequência de bases complementar a um segmento do genoma do vírus. Ao procurar e ligar-se a essa sequência do DNA do vírus, como um alvo específico, uma enzima, a CaS9, corta precisamente o DNA nesse ponto, inativando-o, mas pode ser também usada para inserir uma nova sequência depois do DNA, que é fechado por outra enzima, uma endonuclease, tornando-o ativo na célula, seja para o que for.

 

Entre seus inúmeros usos, a tecnologia CRISPR poderá consertar um único gene mutante defeituoso, responsável por uma doença, como na Coréia de Huntington ou anemia falciforme (ou até, no futuro, múltiplos genes, como no diabetes ou Doença de Alzheimer), inserir genes extras para sintetizar mais proteínas que estão em falta (como na síndrome de Rett em meninas), ligar ou desligar determinadas cadeias metabólicas deletérias, e até alterar genes normais em embriões (“designer embryos”), com cor dos olhos, ou modificar a resistência a doenças, produzir linfócitos capazes de aniquilar um câncer, e muito mais. Também poderá eventualmente usado para produzir super-humanos (com olhos de águia, por exemplo, ou um QI de 180). As aplicações de CRISPR/Cas estão se multiplicando rapidamente: já em 2016, cientistas curaram um defeito genético que causa a retinite pigmentosa usando a edição CRISPR/Cas9 em células-tronco pluripotentes induzidas derivadas de um paciente com a doença. O potencial médico, portanto, é gigantesco.

A perspectiva mais impactante, no entanto, é o uso dessas e de outras técnicas mais avançadas de engenharia genética para modificar as células germinais (óvulos e/ou espermatozoides, ou suas células precursoras na gametogênese), de tal modo que as modificações serão herdadas por todos os descendentes do ser humano modificado! Isso acrescenta ao caldo já eticamente explosivo, a possibilidade de produzirmos no futuro novas espécies humanas e animais, divergentes, e incapazes de se reproduzirem com o Homo sapiens atual.

Como tudo isso foi possível? Aqui entra o segundo elemento da convergência, a tecnologia digital de informação. A decodificação genômica, a síntese de nucleotídeos e de proteínas, as técnicas recombinantes de DNA que tornaram possível tantas novas drogas de combate a doenças previamente incuráveis, só foram desenvolvidas com o apoio imprescindível dos computadores. As “bibliotecas” de bases do DNA e RNA, e de aminoácidos são extensas e complexas, e as técnicas para desvendá-las e armazená-las dependem de computação pesada (“big data”). Para se ter uma ideia desse volume, atualmente o GenBank, o maior repositório de sequências decodificadas do planeta, abrangendo já milhares de espécies de plantas, animais, bactérias e vírus, já atingiu mais de 300 bilhões de pares de bases e cresce à razão de 15% por ano. A descoberta de sequências específicas, através de metodologias de comparação, exige computação paralela a velocidades que não existiam praticamente há apenas uma década, e que continuarão crescendo, principalmente com o surgimento dos computadores quânticos, capazes de velocidades verdadeiramente vertiginosas.

 

Os equipamentos de decodificação e síntese também evoluíram com a aplicação de computação de alto desempenho e a chamada NGS (“Next Generation Sequencing”). Uma máquina automática de decodificação como a Illumina, HiSeq X Tem, por exemplo, é capaz de decodificar 10 a 20 genomas completos por dia, a um custo de 10 milhões de dólares por máquina. Algumas empresas têm fileiras e mais fileiras dessas máquinas caríssimas em paralelo. Novos equipamentos, ainda mais baratos (“Sequencing for the Masses”, como tem sido anunciado) surgirão, ao ponto de ocuparem o espaço de um pequeno livro e serem adquiridos por laboratórios convencionais como periféricos de smartphones!

Finalmente, o degrau mais espantoso que já estamos subindo, é o acoplamento das técnicas de computação cognitiva, como Inteligência Artificial (AI), aprendizado de máquina (ML) e redes neurais artificiais (DL – Deep Learning, que imitam o funcionamento do cérebro humano), que têm o potencial de provocar uma revolução tão profunda, que sequer temos como imaginar. Ferramentas como essas já são capazes de explorar e gerar candidatos de novas drogas, baseadas em aprendizado de máquina, à razão de dezenas de milhares por hora, encurtando de anos para meses o período de desenvolvimento na primeira fase. A aplicação da AI e ML no diagnóstico de doenças poligênicas complexas, e na descoberta científica automática de relações gene-ambiente-doença também serão grandemente alavancadas.

Em suma, estamos vivendo um período fascinante da história humana, em que na próxima década veremos a medicina ser transformada radicalmente por essa parceria entre biologia molecular, medicina translacional e de precisão, e computação cognitiva! As faculdades de medicina e os cursos de residência precisam urgentemente se adaptar aos novos tempos, pois muito pouco dessa nova revolução está sendo ensinada para os médicos do futuro, que usarão essas ferramentas em nível muito maior do que agora.

Para nós, que somos da área médica, só conseguimos enxergar benefícios para essa convergência. Mas não é bem assim. Consequências inesperadas poderão até levar à nossa extinção como espécie, como têm alertado vários autores, como o genial físico Stephen Hawking. Por isso, em um próximo artigo discutiremos as dimensões da bioética relacionadas a essas novas tecnologias, e as ameaças que elas podem representar, como o aumento da letalidade de vírus comuns, através da engenharia genética, com intuitos terroristas.

Sobre o autor

O Prof. Renato Marcos Endrizzi Sabbatini, graduado e doutorado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, em fisiologia humana, neurociências e computação aplicada à medicina, é um dos pioneiros latinoamericanos nessa área, tendo completado 50 anos de atividade profissional, a maior parte dedicado à pesquisa cientifica e ensino na USP e também na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), onde fundou, em 1983, um dos primeiros e maiores centros de pesquisa em TI em saúde, o Núcleo de Informática Biomédica e foi docente do Departamento de Genética Médica. O Prof. Sabbatini é um dos 100 acadêmicos mais influentes do mundo, como membro eleito fundador da International Academy of Health Sciences Informatics (IAHSI) e atua como renomado consultor técnico-científico para empresas altamente inovadoras em tecnologias em saúde. Homepage: www.renato.sabbatini.com