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Os biomarcadores de saúde e de doença ganharam muita atenção na ciência biomédica nos últimos anos. Se você fizer uma busca no PubMed, por exemplo, perceberá um ritmo praticamente diário de publicação sobre esse tema. Com a Transformação Digital da medicina, contudo, essa tendência vai se acelerar ainda mais. Entende por que?

Primeiramente, eles reduzem a incerteza da profissão médica, que acontece pela natureza intrínseca da nossa profissão. Estamos sujeitos a erros cognitivos e a influências das nossas crenças. Quando trazemos critérios mais objetivos, desde que validados cientificamente, sentimos que podemos ser mais assertivos ao determinar o prognóstico, o diagnóstico e o plano terapêutico dos pacientes.

Hoje em dia, a inteligência artificial aplicada à medicina vem melhorando ainda mais esse cenário. Por meio de técnicas de cruzamento de dados clínicos, laboratoriais e de imagem, o aprendizado de máquina pode identificar padrões dificilmente perceptíveis para a mente humana.

Um exemplo é a técnica de clusterização de dados que pode verificar que um determinado biomarcador não é útil para a população geral, mas pode ser usado em grupos específicos. Contudo, a máquina também erra justamente pelo seu excesso de objetivo, que não as permite captar as nuances que a cognição humana é capaz de notar.

Portanto, em grande parte, os biomarcadores auxiliam, sim, a reduzir a incerteza. No entanto, eles não substituem o raciocínio clínico do médico. Ao utilizar tecnologias, você precisa sempre ter em mente que você precisa utilizá-las ativamente, — com uma mente crítica e reflexiva.  Afinal, como veremos a seguir, a flexibilidade da nossa mente é fundamental por mais que biomarcadores e máquinas auxiliem a predizer com mais precisão o estado de saúde de um paciente. 

Quais as aplicações dos biomarcadores na medicina atualmente e como eles poderão ser integrados à prática médica? Confira nosso post!

O que são biomarcadores e quais os seus tipos?

Os biomarcadores são indicadores mensuráveis de processos biológicos, patológicos e farmacológicos. Portanto, são utilizados para estimar a probabilidade de que um indivíduo.

Apesar de ser um termo que se popularizou recentemente, já o utilizamos na prática clínica há muitos anos. Todos os exames (radiológicos, laboratoriais, anatomopatológicos, testes cognitivos) são utilizados para encontrar biomarcadores de doenças. 

Existem diferentes formas de classificar os biomarcadores. A mais simples dela têm em vista o método e o parâmetro utilizado:

  • Molecular, que são medidos por meio da quantificação ou avaliação qualitativa da presença de determinada molécula no organismo;
  • Histológicos — alterações celulares e teciduais perceptíveis às técnicas de microscopia;
  • Radiográficos — surgem com a interação de sinais físicos com as estruturas anatômicas do nosso corpo;
  • Fisiológicos — são métodos que avaliam processos fisiológicos, geralmente em tempo real, como o eletrocardiograma e a aferição da da pressão arterial;
  • Cognitivos — são instrumentos de avaliação das funções cognitivas, como os testes de QI e o MINI-Mental.

Além disso, os biomarcadores podem ser classificados, como:

  • de segurança — são biomarcadores que mostram se a saúde do indivíduo apresenta algum risco devido a alguma exposição ou intervenção. Alguns exemplos são os biomarcadores de toxicidade utilizados na medicina ocupacional e nas pesquisas clínicas de fármacos;
  • diagnósticos — são utilizados para auxiliar no diagnóstico diferencial de doenças, auxiliando na confirmação ou exclusão de uma condição;
  • preventivos (de risco e susceptibilidade) — podem auxiliar na identificação e classificação de risco para doenças graves em adultos saudáveis ou assintomáticos. Nesse sentido, temos biomarcadores identificáveis na citopatologia do colo do útero, nas fórmulas de estimativa de risco cardiovascular, entre outras; 
  • prognóstico — são utilizados para estimar a evolução natural e os desfechos clínicos mais prováveis em um indivíduo acometido por alguma condição médica. Por exemplo, as classificações de estadiamento oncológico utilizam geralmente biomarcadores baseados em exames de imagem;
  • preditivo — são biomarcadores que auxiliam na individualização do plano terapêutico de um paciente. Também são muito utilizados na oncologia para a seleção de terapias-alvo. Por exemplo, a presença do EFGR é um passo importantíssimo para determinar a escolha de drogas para determinados tumores de pulmão;
  • de monitoramento — são medidos longitudinalmente para verificar a evolução da saúde de um paciente, como é o caso das dosagens periódica de íons em pacientes críticos;
  • de resposta — avaliam o sucesso ou a falha de um tratamento instituído ao paciente.  

Quais as principais tendências na aplicação dos biomarcadores?

Os biomarcadores substitutos (surrogate biomarkers) certamente são a principal tendência atual. Eles podem ser utilizados como substitutos de desfechos clínicos em estudos clínicos com pacientes. Assim, as pesquisas científicas podem substituir eventos (como óbito e morbidade) por alterações mensuráveis que predizem as chances de esses eventos ocorrerem.

O conceito é relativamente antigo e surgiu na década de 1980 em discussões sobre formas de acelerar pesquisas clínicas sem sacrificar a segurança do paciente e a avaliação da eficácia terapêutica. O conceito por trás dos biomarcadores substitutos apresenta uma plausibilidade significativa:

Se um determinado biomarcador pode medir um desfecho clínico (como mortalidade ou cura) com alta especificidade, ele poderia (em tese) substituí-lo na avaliação dos estudos científicos. Isso traria maior agilidade aos estudos clínicos, visto que as fases 2 e 3 são mais lentas, pois é preciso esperar muito tempo para a avaliação dos desfechos.

Em doenças crônicas e com evolução natural lenta, como as condições cardiovasculares, os estudos podem demorar entre 20 e 40 anos devido à observação dos desfechos. Todavia, se houvesse um biomarcador que prediz agora um desfecho que somente vai se efetivar daqui a alguns anos,  os estudos clínicos poderiam ser abreviados. 

A aplicação dos biomarcadores na cardiologia

Com o aumento da expectativa de vida da população mundial, a busca por biomarcadores para estimar o risco cardiovascular se intensificou. Afinal, as principais causas de mortalidade e morbidade grave nos idosos são as doenças cardiovasculares.

Uma pesquisa americana avaliou proteínas plasmáticas de 22.849 pacientes. Não havia um alvo específico prévio, visto que eles buscaram identificar potenciais biomarcadores para avaliação do risco cardiovascular. 5.000 proteínas foram mapeadas e 27 deles se relacionaram com desfechos clínicos cardiovasculares. 

Com as técnicas de bioestatística manuais, essa tarefa seria impossível. Afinal, ela envolve a comparação entre grupos. Então, precisaríamos identificar previamente um potencial alvo de investigação, como uma proteína específica. Depois disso, haveria  o pareamento e a comparação entre grupos. Portanto, a análise de dados precisava que se explicitasse previamente quais seriam os parâmetros de comparação entre biomarcadores e os desfechos clínicos que cada um deles seriam correlacionados.

Ou seja, dificilmente seríamos capazes de identificar 5000 proteínas em um único estudo. Isso demandaria uma configuração manual de milhões de testes para correlação estatística. No entanto, a inteligência artificial leva os biomarcadores para outro nível. Afinal, ela encontra padrões intrínsecos nas amostras e os relaciona com desfechos populacionais sem a necessidade de uma comparação explícita.

Isso é feito por técnicas de clusterização. Em outras palavras, a inteligência artificial testa milhares de grupos de biomarcadores e os pareia com desfechos clínicos relevantes. O software, portanto, investiga milhares de padrões e seleciona apenas aqueles que apresentam alguma relação com significância estatísticas.

Com isso, a equipe do estudo encontrou 27 biomarcadores plasmáticos que podem auxiliar na estimativa do risco de doenças cardiovasculares. Muitos médicos podem parecer céticos quanto a esses resultados, mas, sem se dar conta, eles usam os biomarcadores no dia a dia clínico. Por exemplo, os índices de colesterol são utilizados por diversas fórmulas clínicas para estimar o risco cardiovascular em pacientes com doenças crônicas.

Agora que temos uma tecnologia com alta capacidade de identificação de padrões e de estabelecimento de correlações, a tendência é um avanço cada vez maior. No entanto, é preciso ter bastante cuidado na interpretação dos estudos que utilizam técnicas de clusterização.

Eles precisam ter um desenho metodológico muito bem feito e serem supervisionados por médicos experientes em pesquisa clínica. Afinal, o excesso de objetividade das máquinas as sujeitam a interpretações frequentemente errôneas. Nesse ponto, a nossa subjetividade e capacidade de interpretar criticamente os números é fundamental.

Portanto… a IA aplicada aos biomarcadores deve ser feita com supervisão humana

Recentemente, foi criado um programa para a predição do risco de morte por Covid-19 por meio de exames de imagem. No entanto, o resultado da avaliação não teve impacto clínico nenhum. 

Afinal, a aprendizagem de máquina identificou, sim, que havia um padrão de radiografias relacionado à maior mortalidade. Contudo o “biomarcador” escolhido pelo software era irrelevante: ele identificou apenas a diferença entre as radiografias tiradas com pacientes em posição ortostática versus em decúbito. Portanto, tratava-se de um grupo que estava internado. Obviamente, ele tinha uma chance muito maior de complicações graves.

Em relação aos desfechos cardiovasculares, portanto, é preciso ter um cuidado redobrado devido à heterogeneidade da população avaliada e o risco de fatores de confusão. Por esse motivo, a Dr. Rebekah Gundry, que coordena pesquisas sobre biomarcadores cardiovasculares, explica que a cautela e o ceticismo devem guiar os estudos

““É bastante comum fazer (…) a previsão de risco com abordagens de inteligência artificial para registros médicos ou combinações de fatores de risco ou fatores genéticos. Mas geralmente esses fatores também podem (…) – não ser fiéis devido à mudança no risco.

Isso ocorre porque eles são imutáveis ​​– por exemplo, histórico genético, demográfico ou médico – ou são causais reversas – por exemplo, a inteligência artificial aplicada a registros médicos geralmente seleciona o número de medicamentos que um paciente está tomando como preditor de risco, então tirar alguém de todas as suas drogas, paradoxalmente e, erroneamente, criaria uma previsão de menor risco”.

Como o médico pode navegar seguramente na transformação digital da medicina e na identificação de novos biomarcadores?

Perceba que, a todo o tempo, falamos que a tecnologia e os biomarcadores auxiliam a “estimar a probabilidade” de um diagnóstico ou de um desfecho. Afinal, eles não são criados para dar certeza a uma suspeita clínica, mas para reduzir o grau de incerteza, que nunca vai ser totalmente eliminado. Daí, vem o papel ativo do médico em interpretar criticamente os resultados dos biomarcadores, pois eles ainda contêm uma chance de erro.

As faculdades frequentemente erram ao não mostrar ao médico que ele está imerso em um campo multidisciplinar. Todos os equipamentos biomédicos surgiram a partir de estudos no campo da física e da química. Em todas essas áreas, está bem estabelecido que a incerteza das medidas é natural. 

Então, cada resultado de um experimento é sempre lido em conjunto com a sua incerteza. Isso não é diferente do resultado de um exame que você pede a um paciente. Ele traz toda a incerteza das medidas físicas. 

A incerteza aumenta ainda mais quando vamos para o campo das pesquisas clínicas. Afinal, começamos a associar essas medidas físicas e químicas (sujeitos à incerteza) a desfechos clínicos dos pacientes. Nem toda correlação significará algo relevante.

Para reduzir a incerteza, utilizamos a estatística, que tem o objetivo de reduzir as chances de uma medida ser devido ao acaso. Se você se lembra da metodologia científica, empregamos testes de significância para nos dizer a probabilidade de uma correlação ser devido ao acaso.

Se o desenho do estudo for bem-feito, aceitamos um resultado como válido quando ele tem uma chance menor do que 5% de ser devido ao acaso. Para diminuir ainda mais as chances de equívoco, esses experimentos precisam ser repetidos por diferentes grupos, em diferentes locais. 

Por isso, um biomarcador encontrado em um estudo científico (por melhor que ele tenha sido conduzido) ainda não significa que a correlação da alteração com a doença está bem-estabelecida.

Para reduzir a incerteza, avaliamos todos esses resultados distintos em metanálises e outros estudos que aprofundam as análises da probabilidade de erro. Assim, reduzimos ainda mais a incerteza.

Depois de todo o rigor metodológico, é encontrada uma correlação entre um biomarcador e um desfecho. Isso significa que a incerteza foi eliminada? Não! A incerteza da medicina nunca é completamente eliminada e isso reflete no seu consultório.

O médico que emprega os biomarcadores como se eles fossem informações certeiras pode sujeitar o paciente a iatrogenia. Afinal, ainda há muitas fontes de incerteza:

  • o erro natural do ato de medir, que é impossível de eliminar;
  • os erros humanos;
  • os erros dos equipamentos;
  • as variações induzidas por diferentes condições ambientais, entre tantas outras. 

Então, quando o resultado da avaliação de um biomarcador chega ao médico, ele precisará empregar todo o seu raciocínio crítico. Isso envolve:

  • o uso do raciocínio estatístico pela interpretação de informações, como o valor preditivo positivo e negativo; 
  • a contextualização de cada caso com uma anamnese bem feita em que podemos colher vários dados que nos auxiliam a compreender o contexto de cada paciente e, assim, nos dá insumo para suspeitar se um resultado reflete a realidade; 
  • a observação clínica atenta dos sinais dos pacientes no exame físico. Com isso, podemos compreender, por exemplo, se uma alteração radiológica reflete a anatomia que observamos. 

Assim, os riscos de erro do excesso de objetividade da tecnologia são mitigados pela subjetividade da mente humana. Da mesma forma, os riscos de erros do excesso de subjetividade da mente humana são mitigados pela objetividade da tecnologia. A incerteza sempre subsistirá, mas essa é uma forma de utilizarmos os biomarcadores e as inovações de uma forma que traz mais segurança para o paciente.

 

Autores: 

  • Lorenzo Tomé, médico, host do podcast Saúde Digital. CEO do Saúde Digital Ecossistema.
  • Ricardo Tadeu de Carvalho, médico, especializado em produção de conteúdo para a área da saúde. Colunista no Saúde Digital Ecossistema. CEO do RT Marketing Médico.