Escolha uma Página

Como vimos, estamos chegando perto do fim da Lei de Moore, que propõe o limite para o avanço dos microchips computacionais. A medicina e as ciências farmacêuticas serão impactadas. Afinal, mesmo os melhores supercomputadores atuais ainda não são capazes de rodar aplicações de inteligência artificial para resolver os complexos problemas relacionados aos sistemas biológicos, como o corpo humano.

Estamos buscando novos modelos computacionais, como a computação neuromórfica (que foi apresentada no post anterior). Agora, vamos falar sobre outra possibilidade: a computação quântica (QC). Ela é baseada no comportamento das partículas atômicas e subatômicas para gerar, armazenas e transmitir informações.

Quer saber mais sobre a computação quântica e sua aplicação na área da saúde? Acompanhe!

Como a computação tradicional é feita?

A computação lógica é feita em portas lógicas que fazem operações sobre bits de dados. Os bits podem ser considerados:

  • 1 — presença de um estado;
  • 0 — Ausência de um estado.

Os bits gera um dado mais complexo. Por exemplo, o bit 0010 é interpretado como o número 2 pelos algoritmos computacionais.

Os microchips contêm transistores, que são equipamentos elétricos capazes de amplificar ou transformar um sinal elétrico. Eles podem, por exemplo, aprisionar alguns elétrons, o que cria um campo magnético passível de leitura por um sensor. Então, nas regiões magnetizadas, temos um bit de valor 1, enquanto temos 0 nas não magnetizadas.

Existem peças elétricas capazes de fazer alterações nessas sinais elétricos, eles funcionam como as chamadas portas lógicas. Ou seja, eles efetuam as operações lógicas com os bits, as quais geram transformam as atividades que realizamos com os computadores. Veja alguns exemplos de portas lógicas:

Porta NOT

Ela inverte o input, isto é, transforma um bit 1 em um bit 0 e vice-versa:

Porta AND

Ela transforma dois bits de input em um terceiro da seguinte forma: 


Porta OR

Ela transforma dois inputs em um único output da seguinte forma:

Porta adder

Existem peças que combinam canais lógicos mais simples para efetuar operações mais complexas. Por exemplo, o 8-bit adder recebe o input de 16 bits diferentes e os soma 2 a 2 para gerar um dado de 8 bits. Desse modo, podemos executar somas numéricas em computadores, por exemplo:

Mas como a informação é gerada a partir dessas portas lógicas?

Portanto, a computação tradicional é a passagem de corrente elétrica por esses portais lógicos. Mas é muito difícil entender como isso se transforma em informações úteis para as pessoas, não é mesmo?

Qualquer coisa pode potencialmente transmitir informações. Por exemplo, no organismo humano, isso é feito com proteínas e outras moléculas que interagem com receptores. Isso gera modificações nos receptores, que liberam mensageiros intracelulares. Tudo isso é uma série de operações de transmissão de informação até o alvo final.

Na tecnologia da informação, entra o papel dos algoritmos, que são códigos de computador feitos para manipular operações lógicas e transformar os sinais de saída (outputs) em informações úteis.

Então, quando o algoritmo identifica uma sequência determinada de 8 bits (1 byte), ele a transforma em um número, um letra ou uma cor na tela.

Um breve resumo de mecânica quântica

O adjetivo vem da palavra “quantum”, que pode ser traduzido como quantidade. Essa nova área da física surgiu no início do século 20 quando Einstein e outros cientistas descobriram a natureza dual da luz.

Descobriu-se que a luz se comporta tanto como partícula quanto como onda — algo impensável até então. O que significa isso em termos mais práticos? A luz (e outras ondas eletromagnéticas) transporta sempre uma quantidade de energia múltipla de um mínimo. Esse valor está ligado à energia de um tipo de partícula, o fóton.

Com o tempo, percebeu-se que outras partículas, como os elétrons, também se comportavam de forma semelhante. 

O princípio da incerteza

Portanto, sem medição, o estado das partículas é uma sobreposição de diversos estados possíveis (autoestados). A medição faz com que um desses autoestados seja expresso. Essa é uma propriedade intrínseca da natureza, ou seja, não é uma questão de nossas medições não serem precisas o suficiente.

A melhor metáfora para explicar a sobreposição e a incerteza é o gato de Schöedinger, que diz que antes de abrir a caixa o gato está morto e vivo ao mesmo tempo:

Isso significa que, por mais que melhoremos nossos equipamentos, o princípio da incerteza ainda governará o comportamento da matéria nos níveis atômico e subatômico. Desse postulado surgem consequências interessantes que são utilizadas para o desenvolvimento tecnológico na medicina, como veremos a seguir. 

Natureza dual da matéria    

Antes de serem medidos, um elétron ou um fóton apresenta tanto comportamento de partícula quanto de onda simultaneamente. O fato de fazermos uma medição, contudo, desencadeia um processo chamado de “decoerência”. Com isso, a matéria assume um desses dois estados possíveis. 

Para compreender melhor essa ideia, imagine uma moeda com duas faces diferentes “cara” ou “coroa” e ela está em cima de uma mesa. Quando você entra na sala e enxerga essa moeda, ela está com no estado “cara”. Na física clássica, a explicação seria que, antes de você visualizar a moeda (medir seu estado), ela estava no estado “cara”. Seu olho apenas mediu um estado anterior.

Na física quântica, porém, diríamos que os estados estavam sobrepostos, isto é, “cara” e “coroa” simultaneamente. O ato de olhar não revelou um estado anterior, mas fez com que um dos estados possíveis fosse “selecionado”, não sendo um retrato preciso do passado.

Um dos principais problemas da física quântica é a dualidade onda-partícula. No início do século XX, os físicos observaram que a luz poderia se comportar ora como onda ora como partícula.

O determinismo clássico versus a mecânica quântica

A física clássica funciona de forma determinística. Em outras palavras, se você sabe o estado inicial (ou final) da partícula e também sabe todas as forças que atuaram nela, é possível saber o estado final (ou inicial).  Em um exemplo grosseiro, se você sabe que uma caixa estava na ponta da mesa e alguém a moveu para o centro da mesa (e nada aconteceu depois), há 100% de chances de você encontrar a caixa lá.

Portanto, sabendo o estado inicial e as forças que atuaram nela, você sabe o estado final. Da mesma forma, se você sabe o estado final e entende quais forças atuaram para que ela chegasse ali, você sabe qual foi o estado inicial.  

O nome dessa característica clássica é “determinismo”. No entanto, na física quântica, as coisas não funcionam desse jeito, elas não são determinísticas. Então, seria como se você não tivesse 100% de certeza de que a caixa estaria lá.

Por esse motivo, em um experimento da física quântica, você não sabe onde a partícula estará. Você sabe o local com maior probabilidade de ela estar. Por exemplo, no caso do exemplo da mesa, você sabe que há uma maior probabilidade de ela estar no centro. No entanto, não é 100% de certeza.  Existe uma probabilidade não-nula de ela estar em outro lugar. 

Você estima a probabilidade de ela estar em determinado local. O cálculo da probabilidade é feito pela função de onda, a letra grega 𝜓 (psi):

É uma função que utilliza números complexos e operações matemáticas complexas. Com o seu resultado, podemos fazer um gráfico que prediz as chances de a partícula estar em cada local:

Isso pode parecer algo “místico” ou sem aplicação, não é mesmo? Mas não é e faz parte do dia a dia da computação tradicional. Lembra que falamos que ela é feita a partir de sinais elétricos conduzidos por elétrons.

Os elétrons são tão pequenos que sofrem, sim, alguns fenômenos quânticos. Por isso, todo dado na computação tradicional tem um cópia no próprio dispositivo. Além disso, os algoritmos tradicionais precisam corrigir essa incerteza a partir de operações numéricas.

Portanto, apesar de não serem quânticos, os computadores tradicionais precisam ser modelados considerando as regras da mecânica quântica para funcionar.

Emaranhamento quântico

Pelas Leis da Relatividade, nenhuma matéria com massa pode ter uma velocidade maior do que a luz, que é representada pela letra “c” e é de aproximadamente 300.000 quilômetros por segundo. A luz consegue viajar na velocidade “c”, pois ela é carregada por fótons, partículas sem massa.

Os elétrons, que compõem o sinal elétrico dos computadores, têm massa. Então, viajam em um velocidade um pouco inferior à da luz. Os computadores tradicionais são tão rápidos, pois, ainda que não seja a velocidade máxima, os elétrons são transportados em circuitos com nanômetros de diâmetro em uma velocidade próxima à da luz. 

Isso traz resultados satisfatórios quando quando estamos processando bilhões de bits de dados por segundo. No entanto, à medida que o número de bits cresce para trilhões e zilhões de dados simultaneamente, os computadores tradicionais perdem a sua função tradicional.

O emaranhamento quântico é um fenômeno em que duas ou mais partículas podem ser estimuladas 

Então, se uma sofre uma alteração X, a outra sofre uma alteração Y ao mesmo tempo. O efeito é literalmente instantâneo. Não é algo muito rápido que parece acontecer ao mesmo tempo, como acontece na velocidade da luz. 

Na computação quântica, os q-bits trabalham de forma sincronizada, visto que informação é transmitida simultaneamente. Não há a limitação da velocidade da luz. Isso poderia aumentar substancialmente a capacidade de processamento. 

Os bits quânticos

Os bits tradicionais funcionam na lógica 1 e 0 (ausência e presença de um estado). No entanto, devido à mecânica quântica, vimos que não é possível determinar com certeza o estado de uma partícula.

Na teoria da informação quântica, acredita-se que podemos aproveitar essas características para gerar operações computacionais.  Por causa do princípio da incerteza e da sobreposição quântica, você não trabalha com bits clássicos, mas com quantum bits (q-bits).

A função de onda 𝜓 de um q-bit é obtida com: o fator “alfa” multiplicado pelo estado 0 somado com o fator beta multiplicado pelo estado “beta”:

Observação: os estados 0 e 1 são vetores matemáticos, enquanto alfa e beta são números.

Quando somamos o quadrado de alfa e beta, o resultado é sempre um. Em probabilidade, isso signifca 100% em um desses dois estados. 

Então, os q-bits operam em vários estados sobrepostos entre 0 e 1.

A grande questão é como transformar isso em informação. Para isso, precisamos de algoritmos. Contudo, a lógica tradicional que vimos acima não funciona quando temos um comportamento probabilístico. Então, precisamos de novos tipos de algoritmos para que os q-bits quânticos se transformem em operações úteis no cotidiano.

Essa é a grande questão: apesar de já termos computadores quânticos, eles ainda não realizam operações práticas para as necessidades humanas.

Por que precisamos da computação quântica para a descoberta de novas drogas?

Um dos grandes avanços da indústria farmacêutica atualmente é a utilização da inteligência artificial para o desenvolvimento de novas drogas em operações computacionais, como:

  • estimar o desenho das moléculas a partir dos componentes atômicos;
  • simular a forma de uma molécula complexa a partir da força elétrica de seus átomos;
  • prever como uma molécula vai interagir com os receptores celulares

A proteômica é um grande avanço nesse sentido. Ela permite simulações do dobramento de proteínas a partir de informações da cadeia de aminoácidos proposta. Contudo, atualmente, ela se limita a simular a forma das proteínas a partir de sequências de aminoácidos determinadas pelo usuário.

Apesar de isso ser um avanço fundamental para o desenvolvimento de drogas biomiméticas. Há uma limitação: esses softwares se baseiam em modelos estatísticos desenvolvidos em computadores clássicos. 

Em outras palavras, a inteligência artificial funciona a partir do teste de milhões de possibilidades. Após esgotar todas elas, os algoritmos estatísticos retornam aquela que deu o melhor resultado. Ou seja, a análise não é simultânea. Ela é progressiva e iterativa, um a um.

Mas qual o problema disso?

Na computação atual, é muito complicado que uma inteligência artificial teste combinações aleatórias até encontrar a melhor para a interação com um receptor. Afinal, a aplicação teria de testar trilhões de possibildidades até chegar à melhor resposta. 

Na indústria farmacêutica, um dos processos mais importantes é o de lead optimization:

  • vamos supor que você deseja criar uma molécula com a mais alta especificidade possível para um determinado receptor celular;
  • potencialmente, há trilhões de combinações de átomos que podem ser testados para criar moléculas;
  • para complicar, inúmeras moléculas podem ser desenvolvidas e ainda será preciso avaliar quais delas apresentam uma boa interação com os alvos farmacológicos. 

Na inteligência artificial tradicional, há uma limitação muito grande, pois, como vimos, os problemas são resolvidos de forma iterativa. Em outras palavras, o computador testa todas as hipóteses e somente, ao final, é capaz de dizer qual é a melhor resposta. 

No entanto, além de haver zilhões de combinações de átomos que podem ser testadas em uma molécula, é preciso testar cada uma delas em cenários que envolvem milhares de variáveis. 

Além disso, no organismo as moléculas interagem com centenas de milhares de outras moléculas. Tudo isso influencia a orientação, a intensidade da interação e outros fatores determinantes para o sucesso de uma droga na prática.

Diante de problemas tão complexos que envolvem zilhões de opções e variáveis, os computadores tradicionais falham bastante. Devido ao emaranhamento e a sobreposição, os q-bits conseguem executar um número muito maior de operações. 

Portanto, de certa forma, a computação quântica pode ser o Santo Graal da indústria farmacêutica. É uma evolução que permitiria um avanço farmacológico incrível com a descoberta de moléculas.

Em um mundo ideal, após inúmeros testes, isso poderia substituir até mesmo as pesquisas clínicas. Afinal, o computador simularia com tanta precisão o comportamento farmacológico que dispensaria um teste em pessoas.

A computação quântica no mercado farmacêutico

Veja o investimento que as farmas têm feito na computação quântica:

  • 17 das 21 maiores companhias farmacêuticas do mundo têm investimentos documentados em computação quântica. As únicas quatro grandes companhias que ainda não têm interesse aberto em CQ são a Johnson & Johnson, Sinopharm, Gilead Sciences and Astellas Pharma;
  • Atualmente, existem 260 startups focadas em computação quântica. 38 delas (14%) estavam investindo em computação quântica;
  • 3250 artigos sobre computação quântica foram publicados desde 2009, 42 deles focaram na aplicação da CQ no desenvolvimento e descoberta de novas drogas. 

Alguns estudos sobre computação quântica no desenvolvimento de fármacos:

Ainda há um longo caminho até que a computação quântica se torne funcional e seja aplicada na área da saúde. Os computadores quânticos atuais ainda funcionam sobre condições muito específicas, como temperaturas abaixo de 250º graus celsius. Além disso, é preciso avançar com algoritmos que façam operações relevantes para as demandas humanas. Até lá, vamos acompanhando o desenvolvimento das pesquisas científicas para prever o futuro da medicina.

Autor: Ricardo Tadeu de Carvalho, médico, especializado em produção de conteúdo para a área da saúde. Colunista no Saúde Digital Ecossistema. CEO do RT Marketing Médico.