O uso de smartwatches na saúde vai permitir que saibamos muito mais a respeito de pontos basilares para a prática médica, como:
- a evolução natural das doenças;
- marcadores de saúde e doença;
- influência do sono, do nível de atividade física e do estresse no desenvolvimento de condições.
Existe uma infinidade de correções clínicas que estão latentes e, talvez, ninguém sequer tenha suspeitado que elas existem. Os smartwatches e outros dispositivos vestíveis podem ser utilizados para o monitoramento contínuo de muitos outros sinais vitais. Essa é apenas a ponta do iceberg!
Esses dispositivos podem ser incrementados com:
- capacitores para a medição de sinais elétricos;
- sensores de som para monitoramento ambiental e de vibrações;
- barômetros para detecção de queda;
- osmômetros para a medição da concentração de biomarcadores no suor;
- sensores de infravermelho para a medição da temperatura e da saturação, entre tantas outras aplicações.
Com isso, por exemplo, já há estudos inclusive avaliando o uso de vestíveis para o diagnóstico e tratamento de distúrbios cognitivos. Hoje, vamos falar de estudos que os aplicaram no diagnóstico da fibrilação atrial, a arritmia mais prevalente na população atualmente. Acompanhe!
Smartwatches na predição de fibrilação atrial
No 71º Congresso da Sociedade Americana de Cardiologia, foi apresentado um estudo conduzido com 2.8 milhões de participantes da China e que teve como objetivo avaliar o uso de smartwatches na triagem de eventos de fibrilação atrial. Patrocinado pela Huawei, ele mostrou resultados promissores.
O desenho do estudo era muito simples:
- A pesquisa coletou dados de todas as pessoas que baixaram um app de monitoramento de fibrilação atrial compatível com o dispositivo da Huawei. Ao aceitar os termos e condições do app, consentiram com o uso dos dados obtidos para a pesquisa. Portanto, tratava-se de um smartwatch comum, desses que são comercializados para o público geral. Não foi especialmente desenvolvido para o monitoramento cardiológico profissional;
- Enquanto está ligado, o dispositivo monitora o ritmo cardíaco por meio de um sensor de fotopletismografia, que é baseado em luz e é o mais utilizado nos smartwatches comerciais. Com ele, é possível monitorar alterações no volume sanguíneo dos leitos vasculares, o que servir como um sinal indireto do comportamento de bomba do coração;
- O app continha um algoritmo de inteligência artificial que detectava automaticamente alterações no ritmo cardíaco, sendo especialmente programado para sinalizar alterações da fibrilação atrial;
- Os pacientes com resultados sugestivos de fibrilação atrial recebiam um contato sugerindo uma visita para uma consulta com um cardiologista.
12.244 usuários receberam a notificação de suspeita de FA. Desses, 2.227 compareceram à consulta e fizeram uma investigação da condição com exames padrão-ouro, eletrocardiograma e o holter 24 horas. A confirmação clínica ocorria quando, após a avaliação dos exames, um médico considerasse uma alta probabilidade da doença.
Desses 2,8 milhões de usuários avaliados, 961.931 também tinham baixado o app de monitoramento para apneia obstrutiva do sono. 18.000 deles receberam notificações para comparecer a uma consulta clínica de avaliação da qualidade do sono.
Portanto, o monitoramento para as duas condições ocorreu de forma sincrônica. Já os resultados foram muito promissores: 94% dos participantes encaminhados foram confirmados posteriormente com a doença. Ainda que não haja nenhuma publicação científica revisada por pares para esses resultados, é um sinal muito animador de que a transformação digital da medicina tem um grande potencial de melhorar nossos indicadores de saúde.
O estudo também avaliou outros fatores secundários, visto que os smartwatches também podem ser utilizados para o diagnóstico de outras condições. Em específico, encontraram um achado bem promissor relacionado ao diagnóstico da apneia obstrutiva do sono, uma condição que sabidamente aumenta o risco de doenças cardiovasculares.
Os dispositivos também foram precisos para auxiliar na triagem da apneia obstrutiva do sono. Portanto, mostram efetividade mesmo quando dois parâmetros são monitorados simultaneamente. Em uma análise de correlação e risco, a pesquisa também encontrou um odds ratio de 1,5 para o risco de fibrilação atrial em pacientes com suspeita de apneia obstrutiva do sono.
Inicialmente, podemos pensar que o mais importante desse estudo é o uso da tecnologia para a triagem de doenças cardiovasculares. Entretanto, há algo mais sutil que nos indica um caminho praticamente certo para o futuro da medicina. Poderemos encontrar correlações clínicas jamais imaginadas previamente.
Da forma como a maioria dos estudos são desenhados atualmente, é necessário primeiramente elaborar uma hipótese alternativa e analisá-la posteriormente com ferramentas estatísticas. Portanto, os estudos são pensados para confirmar
Com a transformação digital, esse cenário muda bruscamente. É possível fazer a coleta contínua de diversos potenciais biomarcadores clínicos. Depois disso, os dados são processados com ferramentas de Big Data e de Inteligência Artificial para encontrar padrões e grupos ocultos. Tecnicamente, isso é uma capacidade de IA chamada de clusterização. Com a observação longitudinal da saúde dos participantes, esses dados podem ser correlacionados com desfechos clínicos de modo que teremos muito mais informação sobre riscos de saúde e sinais precoces de doença.
Há outros estudos sobre smartwatches e fibrilação atrial?
O mais interessante é que o estudo está em consonância com outros realizados por outras pesquisas. Em 2019, pesquisadores da Apple Heart Study Investigators também fizeram uma pesquisa, publicada na NEJM, para a triagem de distúrbios do ritmo cardíaco a partir de dispositivos ópticos acoplados a smartwatches.
Os participantes utilizaram um aplicativo de monitoramento da Apple após consentirem com a coleta de dados em seus smartphones, confirmando, assim, a identidade. O critério de inclusão era a ausência de diagnóstico prévio de FA, conforme relatado pela própria pessoa no termo de consentimento.
Se o algoritmo identificasse um pulso irregular sustentado, o paciente era encaminhado para uma teleconsulta inicial e um eletrocardiograma era agendado automaticamente para os próximos dez dias. É importante notar que o algoritmo foi programado para notificar qualquer tipo de arritmia, não apenas a FA. Após 90 dias, eles recebem um formulário por e-mail para relatar a condição de saúde.
O principal objetivo do estudo foi “estimar a proporção de participantes notificados com fibrilação atrial mostrada em um patch de ECG e o valor preditivo positivo de intervalos de pulso irregulares com uma largura de intervalo de confiança de 0,10”. O mais interessante dessa pesquisa é o desenho translacional. O principal indicador utilizado foi o valor preditivo positivo, que tem muito mais relevância clínica do que dados, como sensibilidade e especificidade.
A mediana do tempo de monitoramento foi de 117 dias. 2.161 participantes (0,52%) foram notificados para uma consulta médica. De 450 deles, foram obtidos os dados de ECG. Os resultados foram os seguintes:
- presença de FA em 24% deles (intervalo de confiança [IC] 97,5%, 29 a 39) tendo em vista a coorte geral;
- em 35% (IC 97,5%, 27 a 43) na coorte de participantes com 65 anos ou mais.
- valor preditivo positivo foi de 0,84 (IC 95%, 0,76 a 0,92) para a observação de fibrilação atrial no ECG após ter recebido uma notificação subsequente de pulso irregular;
- Em geral, houve uma concordância de 84% entre as notificações e o diagnóstico de fibrilação atrial.
Quais os cuidados que o médico deve ter na hora de interpretar essas pesquisas?
Com o tempo, saberemos também como utilizar essas tecnologias de uma forma clinicamente relevante. No entanto, é muito importante ter cautela com esse tipo de estudo. Afinal, o diagnóstico de uma condição nem sempre traz benefício clínico. Um passo fundamental dessa pesquisa deve ser acompanhar as intervenções feitas nesses indivíduos diagnosticados com fibrilação atrial em estudos duplo cego com grupo controle.
Assim, será possível comparar desfechos relacionados ao diagnóstico precoce. Para isso, é preciso verificar se uma eventual intervenção médica adotada terá impacto na qualidade de vida, na morbidade e na mortalidade dos pacientes.
Afinal, a fibrilação atrial é uma das arritmias mais comuns na população mundial. É extremamente plausível que muitas pessoas convivam com fibrilação atrial sem saber e não tenham nenhum evento negativo durante toda a vida, adoecendo e morrendo devido a outras condições.
A transformação digital da medicina precisa ser acompanhada com muito cuidado para evitar a iatrogenia. Muitas correlações podem ser descobertas, mas não se transformarem em benefício clínico. Devemos sempre nos lembrar do princípio da não-maleficiência das condutas médicas. Se tivermos isso em mente, a aplicação dos smartwatches na saúde será um grande divisor de águas!
Autores:
Lorenzo Tomé, médico, host do podcast Saúde Digital.
Ricardo Tadeu de Carvalho, médico colunista no Saúde Digital Ecossistema.
Excelente abordagem do assunto!
Que bom que o artigo foi relevante! Obrigada pelo retorno!
Excelente artigo. Sou um entusiasta dessa tecnologia e acredito que será inevitável não a utilizarmo num futuro próximo. Espero que avancemos nas pesquisas para que o monitoramento contínuo de sinais vitais possa detectar agravos à saúde de maneira precoce, melhorando a saúde geral da população e, consequentemente reduzindo os custos com a saúde!
Obrigada pelo seu comentário!